-
Bom dia, Dona Creuza - diz, com sua melhor educação, o homem do carro de frutas
- O que vai ser hoje? Diga aí
Dona Creuza demora a responder.,
parece que o cumprimento matinal ficará mesmo sujeito à qualidade das frutas
trazidas.
Dona Bilu, do prédio da esquina, se
aproxima.
- Bom dia, Dona Bilu - o simpático
feirante repete o procedimento
- Bom dia, Raimundo - a senhora aperta os olhos já gastos pelo
tempo - Creuza...?
- Hum?
- Oi, Creuza, minha filha, tudo bem?
- Mais ou menos, Bilu, minha artrite
está cada dia pior, a osteoporose me deixa refém daquele apartamento, e
Ariobaldo? Você soube o que Ariobaldo fez, Bilu? - Dona Creuza pega um mamão do
carro e lança um olhar contrariado para a fruta inocente, antes que Dona Bilu
pudesse tentar adivinhar o que o marido da colega tinha feito, ela mesmo emenda
a resposta na pergunta - Aquele velho caduco comprou um espremedor de frutas!
A senhora deixou a brecha para a
colega fazer algum comentário. Percebendo a deixa, Dona Bilu entoou palavras
solidárias de lamentação pelo terrível gesto de Seu Ariobaldo.
- Ah, Creuza, eu não acredito...- a
senhora pegou uma tangerina, e pesou a fruta na mão antes de complementar a
frase de compaixão - Esses homens quando ficam velhos...Deus lhe guarde, minha
amiga
- Ah Bilu, não é nada, não se
preocupe - mas ela sabia que era, e sabia que Bilu deveria se preocupar mesmo
-
Olhe, se precisar de qualquer coisa pode passar na minha casa, a gente
toma um cafézinho
- Vou tentar... Ariobaldo me tira do
sério, aquele narigudo desgraçado, minha mãe me avisou, sabe? "Creuzinha,
ele não serve para você, amor não bota a mesa". Meu Deus, mas um
espremedor de frutas?! Eu não poderia prever isso, Bilu, não poderia
- Oh, minha querida, não sei nem o
que lhe dizer...
- Eu também sinto muito, Dona Creuza
- o vendedor faz sua presença ser notada, sentindo que deveria dizer algo
- Você está abelhudando nossa
conversa, Raimundo?
- Não, Dona Cre...
- Deixe de ser intrometido, homem!
- Desculpe, Dona Creuza , eu só queria
ajudar a senhora
- Pois ajude não se metendo - a
mulher apalpa uma laranja, poderia fazer um suco (sem açúcar) para acompanhar a
carne assada do almoço
- A vida tem dessas, não é, Creuza?
- Bilu volta ao assunto poupando o vendedor do constrangimento que tinha se
encostado no carro
- Tem...mas você não sabe o que é
conviver com Ariobaldo...uma vida toda, Bilu. Filhos, marido e casa. Uma vida
toda! E agora?!
- Realmente....
- Um espremedor de frutas!
- Oh...
- Eu já rezei tanto....
- Não sei nem o que lhe dizer,
Creuza - Dona Bilu acaricia um limão, como se fosse um filhote frágil e
desprotegido, parecia (naqueles breves segundos de contato) ter desenvolvido
certa afeição pela fruta - Toninho nunca foi assim, é um santo - a mulher sorri
docemente para o limão e escuta a frase ser repetida apenas em sua cabeça
"um santo" - Exemplo de marido e pai, dedicado ao trabalho, à Igreja
e à família ...
" Lembra daqueles domingos no
clube, Creuza? - Dona Bilu não dá oportunidade da amiga responder - Que saudade
desse tempo! - sorri nostálgica para o limãozinho - As crianças se divertindo,
a gente conversando besteira. Ariobaldo pareciaa entendiado às vezes, você tem
razão mesmo. Mas Toninho? - Bilu balança a cabeça negativamente - Toninho não,
sempre ali, de corpo e alma"
A senhora suspirou demoradamente,
como se inalasse as lembranças dos tempos divertidos do clube. Creuza,
preocupada em defender a felicidade do seu passado, tratou logo de trazer
outras memórias à pauta.
- Sim...de corpo e alma - e, como se estivesse
distraída, conferiu a mesma laranja mais uma vez - Todos os funcionários do
clube percebiam como ele estava lá de corpo e alma...
Bilu imediatamente interrompe a
sequência de carícias no filhote de limão. Encara a colega como se fosse a
primeira vez que ouvisse aquela história.
- O que...? - Creuza solta a laranja
que cai em queda livre, como se lembrasse ali, naquele momento, da ligação da
frase com os fatos - Oh! - parece estar desajeitada - Bilu, desculpe, eu
esqueci da garçonete, que cabeça a minha
- Não...tudo bem - a senhora volta a
olhar para o limão.
"O que mudou entre nós, limão?
Você não parece mais o mesmo".
- Desculpe, querida, eu esqueci
daquela derrapadinha do meu compadre Toninho, mas vocês sobreviveram a isso.
Sempre que Ariobaldo me irrita, lembro de você, lembro de como você engoliu tudo
isso, engoliu seu orgulho, seu amor próprio, tudo! Em nome do casamento e da
sua família. Ah, que família linda, valeu a pena viu?
- Sim, valeu mesmo - Dona Bilu sorri
em diferentes tons de amarelo e aperta o limão com força antes de atirá-lo de
volta ao seu lugar.
"Por
mim você morre, limão. Morre. Descascado. Espremido. Queimado. Triturado. Mas
acima de tudo, morto."
- Acho que lhe trouxe lembranças
ruins do passado...Se quiser, passe lá em casa para um cafézinho
- Ah não, o médico cortou o café...
- Dona Bilu sorri e pede para Raimundo colocar duas graviolas numa bolsa
plástica, sustenta o sorriso por tempo suficiente para dar tempo de Creuza
lembrar que ela havia lhe convidado para tomar café, por pena. Foi pena.
- Ah...- Creuza pede que Raimundo
separe uma melancia inteira, que pedirá a um funcionário do prédio para vir
buscar - Bem, então passe lá para tomar um suquinho, Ariobaldo comprou esse
espremedor de frutas mesmo...é da melhor marca, é só colocar a fruta e o suco
já sai prontinho
- Ótimo, vou levar a minha máquina
de assar pão, o pão sai fresquinho
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