segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Suco de Frutas

- Bom dia, Dona Creuza - diz, com sua melhor educação, o homem do carro de frutas - O que vai ser hoje? Diga aí
            Dona Creuza demora a responder., parece que o cumprimento matinal ficará mesmo sujeito à qualidade das frutas trazidas.
            Dona Bilu, do prédio da esquina, se aproxima.
            - Bom dia, Dona Bilu - o simpático feirante repete o procedimento
            - Bom dia, Raimundo  - a senhora aperta os olhos já gastos pelo tempo - Creuza...?
            - Hum?
            - Oi, Creuza, minha filha, tudo bem?
            - Mais ou menos, Bilu, minha artrite está cada dia pior, a osteoporose me deixa refém daquele apartamento, e Ariobaldo? Você soube o que Ariobaldo fez, Bilu? - Dona Creuza pega um mamão do carro e lança um olhar contrariado para a fruta inocente, antes que Dona Bilu pudesse tentar adivinhar o que o marido da colega tinha feito, ela mesmo emenda a resposta na pergunta - Aquele velho caduco comprou um espremedor de frutas!
            A senhora deixou a brecha para a colega fazer algum comentário. Percebendo a deixa, Dona Bilu entoou palavras solidárias de lamentação pelo terrível gesto de Seu Ariobaldo.
            - Ah, Creuza, eu não acredito...- a senhora pegou uma tangerina, e pesou a fruta na mão antes de complementar a frase de compaixão - Esses homens quando ficam velhos...Deus lhe guarde, minha amiga
            - Ah Bilu, não é nada, não se preocupe - mas ela sabia que era, e sabia que Bilu deveria se preocupar mesmo
            -  Olhe, se precisar de qualquer coisa pode passar na minha casa, a gente toma um cafézinho
            - Vou tentar... Ariobaldo me tira do sério, aquele narigudo desgraçado, minha mãe me avisou, sabe? "Creuzinha, ele não serve para você, amor não bota a mesa". Meu Deus, mas um espremedor de frutas?! Eu não poderia prever isso, Bilu, não poderia
            - Oh, minha querida, não sei nem o que lhe dizer...
            - Eu também sinto muito, Dona Creuza - o vendedor faz sua presença ser notada, sentindo que deveria dizer algo
            - Você está abelhudando nossa conversa, Raimundo?
            - Não, Dona Cre...
            - Deixe de ser intrometido, homem!
            - Desculpe, Dona Creuza , eu só queria ajudar a senhora
            - Pois ajude não se metendo - a mulher apalpa uma laranja, poderia fazer um suco (sem açúcar) para acompanhar a carne assada do almoço
            - A vida tem dessas, não é, Creuza? - Bilu volta ao assunto poupando o vendedor do constrangimento que tinha se encostado no carro
            - Tem...mas você não sabe o que é conviver com Ariobaldo...uma vida toda, Bilu. Filhos, marido e casa. Uma vida toda! E agora?!
            - Realmente....
            - Um espremedor de frutas!
            - Oh...
            - Eu já rezei tanto....
            - Não sei nem o que lhe dizer, Creuza - Dona Bilu acaricia um limão, como se fosse um filhote frágil e desprotegido, parecia (naqueles breves segundos de contato) ter desenvolvido certa afeição pela fruta - Toninho nunca foi assim, é um santo - a mulher sorri docemente para o limão e escuta a frase ser repetida apenas em sua cabeça "um santo" - Exemplo de marido e pai, dedicado ao trabalho, à Igreja e à família ...
            " Lembra daqueles domingos no clube, Creuza? - Dona Bilu não dá oportunidade da amiga responder - Que saudade desse tempo! - sorri nostálgica para o limãozinho - As crianças se divertindo, a gente conversando besteira. Ariobaldo pareciaa entendiado às vezes, você tem razão mesmo. Mas Toninho? - Bilu balança a cabeça negativamente - Toninho não, sempre ali, de corpo e alma"
            A senhora suspirou demoradamente, como se inalasse as lembranças dos tempos divertidos do clube. Creuza, preocupada em defender a felicidade do seu passado, tratou logo de trazer outras memórias à pauta.
 - Sim...de corpo e alma - e, como se estivesse distraída, conferiu a mesma laranja mais uma vez - Todos os funcionários do clube percebiam como ele estava lá de corpo e alma...

            Bilu imediatamente interrompe a sequência de carícias no filhote de limão. Encara a colega como se fosse a primeira vez que ouvisse aquela história.
            - O que...? - Creuza solta a laranja que cai em queda livre, como se lembrasse ali, naquele momento, da ligação da frase com os fatos - Oh! - parece estar desajeitada - Bilu, desculpe, eu esqueci da garçonete, que cabeça a minha
            - Não...tudo bem - a senhora volta a olhar para o limão.
            "O que mudou entre nós, limão? Você não parece mais o mesmo".
            - Desculpe, querida, eu esqueci daquela derrapadinha do meu compadre Toninho, mas vocês sobreviveram a isso. Sempre que Ariobaldo me irrita, lembro de você, lembro de como você engoliu tudo isso, engoliu seu orgulho, seu amor próprio, tudo! Em nome do casamento e da sua família. Ah, que família linda, valeu a pena viu?
            - Sim, valeu mesmo - Dona Bilu sorri em diferentes tons de amarelo e aperta o limão com força antes de atirá-lo de volta ao seu lugar.
"Por mim você morre, limão. Morre. Descascado. Espremido. Queimado. Triturado. Mas acima de tudo, morto."
            - Acho que lhe trouxe lembranças ruins do passado...Se quiser, passe lá em casa para um cafézinho
            - Ah não, o médico cortou o café... - Dona Bilu sorri e pede para Raimundo colocar duas graviolas numa bolsa plástica, sustenta o sorriso por tempo suficiente para dar tempo de Creuza lembrar que ela havia lhe convidado para tomar café, por pena. Foi pena.
            - Ah...- Creuza pede que Raimundo separe uma melancia inteira, que pedirá a um funcionário do prédio para vir buscar - Bem, então passe lá para tomar um suquinho, Ariobaldo comprou esse espremedor de frutas mesmo...é da melhor marca, é só colocar a fruta e o suco já sai prontinho

            - Ótimo, vou levar a minha máquina de assar pão, o pão sai fresquinho