domingo, 3 de maio de 2015

Prognóstico

Olá, pessoas, eu andei mesmo desaparecida. São os pequenos passos do cotidiano que vão caminhando em direção ao isolamento, nos afastando dos detalhes que servem para fazer bem. Hoje, no entanto, resolvi compartilhar por essas bandas, uma músiquinha que fiz no fim do ano passado. Abraços.

Por vezes me pego presa numa paralisia
Compulsiva, repetitiva, cheia de manias
Mas, que eu saiba, ainda não diagnosticaram
Um quadro de esquizofrenia
Tenho todos os meus problemas
Só que eu não edito as cenas, como gostaria

Eu posso ser uma mera sonhadora
E eu posso ser uma grande perdedora
Talvez até vocês riam, façam pouco, tenham pena
Pois saibam que, por mim, vocês iam
Para a puta que pariu de quarentena

Porque eu sinto tudo, de tudo
E também não sinto nada

Mas não me vitimizo em nome de uma cara mal lavada

Porque eu não sinto muito
Nem nunca precisei me sentir a coitada


Não me promovo investindo em um complexo de vira-lata

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Suco de Frutas

- Bom dia, Dona Creuza - diz, com sua melhor educação, o homem do carro de frutas - O que vai ser hoje? Diga aí
            Dona Creuza demora a responder., parece que o cumprimento matinal ficará mesmo sujeito à qualidade das frutas trazidas.
            Dona Bilu, do prédio da esquina, se aproxima.
            - Bom dia, Dona Bilu - o simpático feirante repete o procedimento
            - Bom dia, Raimundo  - a senhora aperta os olhos já gastos pelo tempo - Creuza...?
            - Hum?
            - Oi, Creuza, minha filha, tudo bem?
            - Mais ou menos, Bilu, minha artrite está cada dia pior, a osteoporose me deixa refém daquele apartamento, e Ariobaldo? Você soube o que Ariobaldo fez, Bilu? - Dona Creuza pega um mamão do carro e lança um olhar contrariado para a fruta inocente, antes que Dona Bilu pudesse tentar adivinhar o que o marido da colega tinha feito, ela mesmo emenda a resposta na pergunta - Aquele velho caduco comprou um espremedor de frutas!
            A senhora deixou a brecha para a colega fazer algum comentário. Percebendo a deixa, Dona Bilu entoou palavras solidárias de lamentação pelo terrível gesto de Seu Ariobaldo.
            - Ah, Creuza, eu não acredito...- a senhora pegou uma tangerina, e pesou a fruta na mão antes de complementar a frase de compaixão - Esses homens quando ficam velhos...Deus lhe guarde, minha amiga
            - Ah Bilu, não é nada, não se preocupe - mas ela sabia que era, e sabia que Bilu deveria se preocupar mesmo
            -  Olhe, se precisar de qualquer coisa pode passar na minha casa, a gente toma um cafézinho
            - Vou tentar... Ariobaldo me tira do sério, aquele narigudo desgraçado, minha mãe me avisou, sabe? "Creuzinha, ele não serve para você, amor não bota a mesa". Meu Deus, mas um espremedor de frutas?! Eu não poderia prever isso, Bilu, não poderia
            - Oh, minha querida, não sei nem o que lhe dizer...
            - Eu também sinto muito, Dona Creuza - o vendedor faz sua presença ser notada, sentindo que deveria dizer algo
            - Você está abelhudando nossa conversa, Raimundo?
            - Não, Dona Cre...
            - Deixe de ser intrometido, homem!
            - Desculpe, Dona Creuza , eu só queria ajudar a senhora
            - Pois ajude não se metendo - a mulher apalpa uma laranja, poderia fazer um suco (sem açúcar) para acompanhar a carne assada do almoço
            - A vida tem dessas, não é, Creuza? - Bilu volta ao assunto poupando o vendedor do constrangimento que tinha se encostado no carro
            - Tem...mas você não sabe o que é conviver com Ariobaldo...uma vida toda, Bilu. Filhos, marido e casa. Uma vida toda! E agora?!
            - Realmente....
            - Um espremedor de frutas!
            - Oh...
            - Eu já rezei tanto....
            - Não sei nem o que lhe dizer, Creuza - Dona Bilu acaricia um limão, como se fosse um filhote frágil e desprotegido, parecia (naqueles breves segundos de contato) ter desenvolvido certa afeição pela fruta - Toninho nunca foi assim, é um santo - a mulher sorri docemente para o limão e escuta a frase ser repetida apenas em sua cabeça "um santo" - Exemplo de marido e pai, dedicado ao trabalho, à Igreja e à família ...
            " Lembra daqueles domingos no clube, Creuza? - Dona Bilu não dá oportunidade da amiga responder - Que saudade desse tempo! - sorri nostálgica para o limãozinho - As crianças se divertindo, a gente conversando besteira. Ariobaldo pareciaa entendiado às vezes, você tem razão mesmo. Mas Toninho? - Bilu balança a cabeça negativamente - Toninho não, sempre ali, de corpo e alma"
            A senhora suspirou demoradamente, como se inalasse as lembranças dos tempos divertidos do clube. Creuza, preocupada em defender a felicidade do seu passado, tratou logo de trazer outras memórias à pauta.
 - Sim...de corpo e alma - e, como se estivesse distraída, conferiu a mesma laranja mais uma vez - Todos os funcionários do clube percebiam como ele estava lá de corpo e alma...

            Bilu imediatamente interrompe a sequência de carícias no filhote de limão. Encara a colega como se fosse a primeira vez que ouvisse aquela história.
            - O que...? - Creuza solta a laranja que cai em queda livre, como se lembrasse ali, naquele momento, da ligação da frase com os fatos - Oh! - parece estar desajeitada - Bilu, desculpe, eu esqueci da garçonete, que cabeça a minha
            - Não...tudo bem - a senhora volta a olhar para o limão.
            "O que mudou entre nós, limão? Você não parece mais o mesmo".
            - Desculpe, querida, eu esqueci daquela derrapadinha do meu compadre Toninho, mas vocês sobreviveram a isso. Sempre que Ariobaldo me irrita, lembro de você, lembro de como você engoliu tudo isso, engoliu seu orgulho, seu amor próprio, tudo! Em nome do casamento e da sua família. Ah, que família linda, valeu a pena viu?
            - Sim, valeu mesmo - Dona Bilu sorri em diferentes tons de amarelo e aperta o limão com força antes de atirá-lo de volta ao seu lugar.
"Por mim você morre, limão. Morre. Descascado. Espremido. Queimado. Triturado. Mas acima de tudo, morto."
            - Acho que lhe trouxe lembranças ruins do passado...Se quiser, passe lá em casa para um cafézinho
            - Ah não, o médico cortou o café... - Dona Bilu sorri e pede para Raimundo colocar duas graviolas numa bolsa plástica, sustenta o sorriso por tempo suficiente para dar tempo de Creuza lembrar que ela havia lhe convidado para tomar café, por pena. Foi pena.
            - Ah...- Creuza pede que Raimundo separe uma melancia inteira, que pedirá a um funcionário do prédio para vir buscar - Bem, então passe lá para tomar um suquinho, Ariobaldo comprou esse espremedor de frutas mesmo...é da melhor marca, é só colocar a fruta e o suco já sai prontinho

            - Ótimo, vou levar a minha máquina de assar pão, o pão sai fresquinho